Parecer-ser feliz


O filósofo Sócrates acreditava que existia uma voz que falava em sua cabeça, era uma espécie de gênio pessoal que em latim seria "daemon" e que traduzimos como "dâimon". Essa voz dizia a ele qual a missão de sua de vida, o que ele precisava fazer para ser feliz _ e o conceito grego de felicidade (que eles chamavam de eudaimonia) não é nada parecido com o nosso atualmente. Para os gregos o universo, o cosmos, era finito e ordenado, e ser feliz é estar alinhado com esse cosmos. E estar alinhado seria dizer que precisamos através da reflexão, descobrir quais são nossas habilidades, nossos talentos, e viver de acordo com eles. É como se tudo fosse uma grande máquina, onde cada peça tem sua função, e assim, quando esta peça faz exatamente aquilo que foi feita para fazer, é aí que se pode dizer que ela está alinhada com a grande máquina.

As sociedades humanas mudaram muito desde então, e esse enorme fluxo de mudanças mudou nosso entendimento sobre a vida, a felicidade, o universo e tudo mais. Passamos por épocas em que era possível quase que prever como a vida seria, para o bem e para o mal. As mudanças eram mais lentas, assim como a comunicação e a possibilidade de deslocamento. Na era medieval, por exemplo, um servo de um rei sabia que continuaria servo, e que muito provavelmente viveria no mesmo local até o dia de sua morte.

Ao colocar o passado em perspectiva e comparando-o com o mundo atual, podemos nos arriscar a dizer que esse passado era uma época de certezas, estabilidades e de alguma ordenação. Não que não houvessem mudanças, mas que por estas serem mais lentas, as consequências eram sentidas muitos anos depois, e aquela geração que provocou tais mudanças, talvez nem chegasse a sentir tanto assim tais consequências.

Hoje em dia porém, tais mudanças tem acontecido de forma cada vez mais rápida, e cada dia mais fica difícil tentar prever o que pode acontecer com nossas vidas. A concentração de poder e riqueza nas mãos de poucos tem aumentado cada vez mais, e tais poderes, graças as novas tecnologias, tem cada vez maior capacidade de controlarem nossas vidas, sabendo para onde vamos, o que fazemos e até o que pensamos. As linhas que dividiam vida privada e pública, são cada vez menos distinguíveis, e se antes tínhamos apreço ao anonimato e a privacidade, o sistema nos colocou numa armadilha: voluntariamente escancaramos todos os aspectos de nossas vidas, e, se não o fizermos, nos tornamos invisíveis, estranhos, atrasados, desconectados do "mundo".

Essas mudanças nos trazem cada vez mais insegurança de como agir e pensar, porque não há mais certezas. Antes que você possa se acostumar como uma mudança em sua vida, outra mudança ocorrerá por cima. É como uma espécie de constante atualização de software, que por um lado pode trazer boas e novas funcionalidades, mas que ao fim e ao cabo aumentam o custo de memória e processamento. Não é à toa que a palavrinha preferida do mercado no momento é a tal resiliência. Ser resiliente num nível mais alto é passar por todo tipo de pressão e humilhação, e ser capaz de no dia seguinte acordar como se nada tivesse acontecido _ é uma característica típica de psicopatas, que são indiferentes ao sofrimento. É claro que em algum momento, tais humanos _ os não psicopatas _ não suportam lidar com tantos problemas, e podem cair nos braços de algum coach _ que vai dizer a estas pessoas, que se as coisas dão errado, a culpa é delas _ e por fim caem no mundo das drogas (legais) das indústria farmacêutica.

Nem precisaria dizer quem são os grandes beneficiários de todo esse sofrimento. Deveria ser cristalino, para nós que sofremos dia após dia, nessa máquina de moer carne do capitalismo, que apenas algumas pessoas se beneficiam de tudo aquilo que produzimos com nosso intelecto e com nossas mãos. É duro que muita gente não perceba o que está em jogo, e por quais interesses de fato lutar. É duro ver pessoas pobres e de classe média lutando por interesses de uma classe que está acima, que as explora e as escraviza em nome do lucro. É como se apaixonar pelo dono do chicote, ou ter afeição por quem as estupra.

[Esses dias eu ri por dentro quando ouvi alguém dizendo "nós trabalhamos até x dia do ano, apenas para pagar impostos ao governo. Agora que vamos começar a trabalhar para nós". Vou explicar a piada: Não é para nós que vamos trabalhar até o final do ano, é para o patrão. De tudo aquilo que produzimos, não ficamos com praticamente nada, o governo fica com um tanto, e o patrão com quase tudo.]

E onde fica a felicidade nesse mundo de superexploração do trabalho, do consumo desenfreado, das rápidas transformações, das incertezas, da vigilância, dos riscos naturais, da ansiedade e da depressão? Ser feliz nesse novo mundo, infinito, caótico, conectado, é vender-se como mercadoria, é maquiar-se, photoshopar-se, crossfitar-se, gourmetizar-se, é poder ser visto, lido, ouvido, curtido, compartilhado e seguido.

Virtual é aquilo que não é verdade, e é nesse modo de vida que estamos embarcando, num mundo virtual, onde vigora o paradoxo em que ser é parecer.

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