Carla, a rainha da plebe.


Praça da independência, lugar onde pregadores e ativistas políticos vão todas as terças e quintas feiras de sol para falar de suas crenças e opiniões sobre a sociedade contemporânea.

Alguns deles fazem sucesso e suce$$o. Pagam algum garoto de rua para passar com um pote de tinta acrílica para receber sua contribuição por suas palavras.

O dinheiro e a fama tem a capacidade de mediocrizar as coisas. Muitos vendo que o evento gerava um retorno interessante, passaram a falar também ao público, mesmo sem ter muito o que falar. Alguns falavam até mesmo da escalação da seleção ou das saídas noturnas do prefeito.

A menina Carla passa pelo local vários dias e para para assistir aquelas manifestações do pensamento underground, da ralé, do gueto. Ela se diverte com tamanhos absurdos e às vezes se emociona com a sinceridade de alguns dos oradores.

Após o suícidio do irmão, ela saiu de casa para morar com uma amiga. Não suportava mais viver com a mãe e suas tentativas frustradas de justificar a morte do filho. Pior do que isso, mesmo depois da morte, a mãe e o pai negavam a homossexualidade do filho.

A raiva dos pais, a tristeza com o irmão, as tentativas frustradas de encontrar o velho Dionísio, a dificuldade de achar um emprego e as dúvidas de que caminho seguir na vida a fazem chorar quase que diariamente. Seu consolo é seu diário, seu fiel confidente para quem ela conta tudo o que sente e tudo o que pretende fazer.

Em uma quarta feira de madrugada, Carla pede o sono, começa a andar pela casa, olha o relógio, abre a geladeira, acende e apaga as lâmpadas, deita, levanta e finalmente senta em sua escrivinha. Pensa em escrever algo, liga o computador e o desliga em seguida, quer um texto manuscrito.

Por horas ela escreve...

A praça da independência está o velho caos de sempre, todos andam por todos os lados, pregações do fim do mundo, discursos anti-mídia, anti-governo, anti-capitalismo, anti-nazismo e anti-qualquer-outra-coisa. Os pipoqueiros e vendedores de espetinhos estão contentes e confiantes na renda. A polícia está sempre por perto, porém tem ordens de deixar o circo prosseguir, é um tipo de medida para que os sem-teto, sem cama e sem cidadania tenham algum divertimento.

Carla chega na praça com algumas folhas de caderno e uma tremedeira ansiosa nas mãos. Após o que parecia ser a última apresentação do dia, ela sobe as escadas até o púlpito imaginário.

Ela se posiciona como se fosse a próxima estrela do show suburbano. Aqueles que estavam de costas, indo embora, se viraram para entender o silêncio incomum que se abatera sobre a praça. Todos voltaram, e até quem passava de longe veio entender o que acontecia.

Silêncio. Uma mocinha de quase 20 anos, com bons trajes e jeito de classe-média disposta a falar com o povão.

Tião coloca mais pipoca para fritar e Quincas mais espetos na brasa!

A massa não costuma ser inteligente, mas não é boba, sabe quando algo tem significado.

Carla olha para as pessoas da praça, ajeita os papéis, e depois de ouvir um "começa logo aí menina" se apressa e começa seu discurso.

"Eu não sei, eu não entendo e acho que nunca saberei ou entenderei o que é esse negócio de verdade, de realidade.

Eu tenho um corpo, eu tenho sentidos mas não sei dizer se o que meus olhos veem, meus ouvidos escutam, minha narinas cheiram, minha boca fala e minha pele sente é o mesmo que a da minha amiga que mora comigo, da minha mãe, do crápula do meu pai ou de vocês aí em baixo.

Homens e mulheres tem passado a vida questionando a própria existência e as regras de sua conduta em sociedade.

Dizem que temos mais cultura, somos mais evoluídos, vivemos mais e melhor graças a tecnologia. Mais, sim, vivemos, mas será que melhor?

Eu vejo vocês aqui e insisto em não entender como alguns gostam desta forma de viver, sendo jogados de um canto a outro por pessoas como meu pai, que tem dinheiro e influência de sobra. Eu não entendo se vocês são, de fato, fracassados, ou se pouco querem da vida e assim, pouco lixo consomem.

Eu vi mais sorrisos aqui do que nas festas fartas que meu pai dá aos ricaços desta selva.

Será que vocês são o resultado da liberdade que eu leio nos livros de filosofia na minha escola burguesa? Uma vida sem bens, com desejos escassos e com descarte da beleza da sociedade tradicional?

Muitos de vocês vivem do lixo que eu produzo. É por dinheiro, claro, sempre é, mas eu sou tão inteligente e e estudada que degrado o planeta, e vocês, por dinheiro, o conservam.

Sabe gente, eu tenho um quarto bem grande, cheio de coisas que eu não uso. Meu pai, aha, tem tanto dinheiro que nem cabe na cueca dos políticos que ele compra. Quando ele não tem o que fazer, compra uma casa ou um carro, minha mãe cura a depressão dela com o cartão de crédito.

Eles chamam vocês de escória. Eles pagam pouco para os funcionários deles e ainda os tratam mal.

Engraçado, eles vão para a igreja quase toda semana falar com um tal de deus, que eles dizem acreditar. O padre os ama. Sabem porque? Ah, dinheiro gente. Eles doam uma quantia bem legal para a igreja e os olhinhos cristãos do padre brilham feito diamantes da Serra Leoa. Não posso comentar com vocês que parte do que meu pai doa é para lavar dinheiro. Psiuu, não deixem a polícia ouvir!! Desculpem guardas, meu pai compra um monte de vocês também. E fiscais também, um monte deles são pagos para não ver.

Falando em igreja, eu estou braba com a igreja. Um padre não quis ir no enterro do meu irmão porque ele se suicidou e era homossexual. O padre disse que a alma do irmão ia vagar e ia para o inferno porque ele era "bixa".

Este mesmo padre disse meses antes que deus perdoaria um outro padre condenado por pedofilia. Eu disse con-de-na-do.

E meu irmão não iria.

Querem saber?! Estou me danando para o deus cristão, muçulmano, judeu e qualquer outro que seja.

Deus está morto, lidem com isso.

(um protesto ameça começar no meio do povo).

Hey, oras, vocês são livres. Não precisam de ninguém dizendo quais regras precisam seguir.

Claro, não precisam ser radicais com o que eu disse, nós podemos ser melhores que isso.

Que tal um pacto universal onde todos os seres humanos prometessem se respeitar e não matarem uns aos outros? Não porque uma entidade divina pediu, mas é porque nós, depois de milhares de anos de convivência social percebemos que dar porrada sem motivo dói e magoa.

E vocês sabem que às vezes, quando politicamente conveniente, até mesmo deus autoriza uma matancinha aqui e um genocídio ali.

Afinal, vocês tem alguma certeza destas coisas que acreditam? Vocês tem bastante tempo livre, inclusive para pensar nas coisas da vida. Vocês vivem em um mundo paralelo, as pessoas ditas normais, nem querem passar perto de vocês, elas não ligam para vocês e acho que vocês também não tem que ligar para elas.

Pessoas que precisam de objetos para preencher sua existência são vazias. Quanto menos você precisa, mais você é.

Eu peço uma gargalhada bem grande para minha mãe, a mulher mais vazia que eu conheço!!!

(Clara ganha o público, quase todos começam a rir).

É verdade o que eu digo? Não sei, não sei e não sei! É como eu penso, é como eu sinto, é o resultado de muitas porcarias e genialidades que me deparei nestes longos 19 anos de vida.

Amo ouvir o que tem a dizer aqui. Acho apenas besteira quando alguém vem pregar o fim do mundo. Ora, preguem a vida, a esperança, a fraternidade e a morte do deus dinheiro, do deus mercado e qualquer forma de deus opressor!

(todos aplaudem!!!)

Só uma última coisa. Meu irmão e uns amigos delinquentes deixaram um velho mendigo caolho, de tanto baterem. Eu queria pedir desculpas a quem quer que ele seja. Meu irmão pagou com a própria vida por este crime e os outros estão vivos e soltos. Eu vou deixar uma foto deles com alguns de vocês, a polícia não quis registrar boletim e fazer justiça, neste caso, ou a polícia volta atrás ou façamos nós a justiça!

Obrigado!"

Carla sai ovacionada do púlpito, ganha um saquinho de pipoca doce do Tião e um espeto de cafta do Quincas.

A praça da independência nunca mais será a mesma. As mulheres, finalmente, começam a mudar o curso da história neste lugar.


De longe, Dionísio, o caolho, ouviu cada palavra e assentiu com a cabeça para aceitar as desculpas de Rafael, o texugo...

.

Postar um comentário

1 Comentários

  1. Me chamo Carla tbém e quero dizer q me senti profundamente familiarizada com a personagem, muito além de nossos nomes. É exatamente assim q me sinto em relação a este mundo.
    Espetacular. Obrigada.

    ResponderExcluir