Gel no Cabelo


Desde criança me lembro minha mãe dizendo: "passa um creme neste cotovelo, está parecendo cotovelo de nêgo". Sinceramente, se parecia cotovelo de nêgo ou não, nunca me importou, nem entendia direito o que isso queria dizer.

Quando criança ou adolescente, sabemos que os cotovelos e joelhos são as primeiras partes a irem ao chão em qualquer queda, logo, machucados e mais machucados se formam nestas partes e em pessoas brancas, que não cuidam da pele nestas áreas sofridas, elas vão escurecendo _ fora o sol que se toma nas regiões onde a roupa não cobre, o que faz de você branquelo em certas partes, e menos branco em outras.

Mas uma coisa que ouvia dos adultos _ das mulheres mais do que dos homens _ me incomodava: Era o tal do cabelo de nêgo; o cabelo pixaim; o cabelo ruim; a esponja de aço e por aí vai.

Meu cabelo é enrolado, não chega a ser muito enrolado ou mesmo pixaim, mas não importava, ele não era liso. E para os padrões de beleza, não ter cabelo liso é feio. Quase todos os meninos tem o cabelo liso, quase todas as meninas tem o cabelo liso, e os que têm cabelo enrolado, sempre o cortavam na máquina, número 2, 3 ou 4, ou seja, os meninos que tinham cabelo ruim, tinham que raspar a cabeça. E no caso das meninas, sempre deixavam o cabelo preso.

Tem aquela piadinha que cabelo ruim é que nem bandido, quando não está armado, está preso. Tem também aquela música: "o nêga do cabelo duro, qual é o pente que te penteia".

Com cerca de 12 ou 13 anos descobri aquele que me salvaria da desgraça de ter um cabelo ruim.

O Gel Fixador


Esta maravilha deixa o cabelo com efeito molhado e com os fios mais separados uns dos outros, alisava vários fios e melhor ainda, durava quase o dia todo! Para quem odiava o próprio cabelo, era uma maravilha, não porque o deixava o melhor do mundo, mas porque diminuía o volume e o deixava menos enrolado do que era _ o que já estava ótimo.

Melhor de tudo, um pote de 500ml durava meses! E mais legal ainda, era barato, R$5,00 e era todo seu!

E esta amizade durou quase 15 anos.

Você fica dependente daquilo. Todo dia tem que acordar e tomar banho, ou pelo menos lavar a cabeça só para poder passar o gel. Quando chega, toma outro banho, só para passar o gel. Não usa boné, porque gruda gel e ele sai da cabeça, zoando o cabelo. Está pronto para dormir, de repente te ligam te chamando para sair, molha a cabeça e passa o gel _ ou não sai, porque fica com preguiça deste processo todo.

Quando não tem gel, o fim do mundo está próximo e nada mais importa do que adquirir um pote do ouro azul. Sua autoestima é destruída sem o gel. Nenhuma garota olharia para você sem o gel no cabelo _ se olhasse, era para zombar, certamente. Sem gel, seu cabelo fica igual cabelo de nêgo, como o seu cotovelo, sem os cremes.

É engraçado como a sociedade implanta ideias nas nossas cabeças. Mais engraçado é como nós tentamos viver nossas vidas lidando com todas as contradições geradas a partir das ideias da sociedade e de suas próprias.

De um lado você combate o racismo, o preconceito racial e de outro utiliza de cosméticos que reforçam o racismo que você mesmo combate. Mas tudo isso, às vezes, sem se dar conta. Sem ter consciência da contradição que se está alimentando.

Não quero dizer que quem usa gel esteja sendo racista. Não é o ato de usar o gel que determina isso, mas suas motivações provavelmente.

Os padrões de beleza sociais exaltam os olhos claros, a pele clara, o cabelo liso. Todo um padrão europeu é endeusado, enquanto que os padrões afro são denegridos: a pele escura, o cabelo enrolado e os olhos escuros.


As aberrações surgem de quem quer escapar dos modelos que a sociedade encara como feios ou impróprios. As pessoas usam pó para clarear a pele; usam fortes compostos químicos e ferros quentes em seus cabelos para alisá-los; lentes claras em seus olhos para clareá-los.

As pessoas normalmente desejam ser aceitas como são. Mas quando se tem uma sociedade que vive dizendo que isso é bobagem, que o padrão não é ser aceito, e sim, seguir tais regras, fica cada vez mais difícil se olhar no espelho e se aceitar.

Eu abandonei o gel faz seis meses, não sinto falta dele. As caspas diminuíram , ele cai menos e ele está menos seco. Continua enrolado, como sempre foi, mas sinto que fui um idiota estes anos todos, pois ele está muito bom como está.



[Atualização em 19/05/2020]

Posso não ter usado as melhores palavras para conduzir o assunto, mas de qualquer forma, acredito que ter abandonado o gel foi sim uma ótima escolha. No começo tive que usar uns cremes, porque o gel ressecou muito o cabelo. Mas hoje, depois de mais de 6 anos, meu cabelo vai bem melhor _ e nunca mais tive caspas.

E com relação a este assunto, pouco mudou, ainda existe o padrão de beleza europeu que é a referência do que é ou não bonito. Mas algo de diferente passou a ocorrer, que é a maior aceitação das pessoas com cabelo afro, que passam a usá-los cada vez mais da forma natural _ e grandes, soltos _ também como forma de resistência cultural e política, o que é louvável.


Postar um comentário

0 Comentários