Lembro-me
que quando adolescente tinha um celular que quase nunca tinha crédito, e só
servia para jogar joguinho ou para ligar a cobrar. Carregava para cima e para
baixo mais por frescura do que por necessidade. Quando queria visitar um amigo,
ia até sua casa, não precisava ligar antes de ir, se não estivesse, voltava
embora e tentava de novo outro dia. Tinha pouquíssimas amizades de longe, e
quando queria falar, tinha que saber o endereço para mandar carta.
Não espere
que eu diga que naquela época que era melhor, na boa, era muito chato mandar
carta e o sofrimento de esperar a resposta não era dos mais agradáveis.
Com os
smartphones, nunca mais precisei enviar uma carta, e ter crédito no celular não
virou uma obrigação por causa dos comunicadores que usam apenas o wifi.
Carregar o celular já fazia mais sentido, porque a qualquer momento alguém
poderia entrar em contato ou mesmo estar disponível para uma conversa.
Dar o número
de telefone é dar o consentimento de se estar disponível para o outro o tempo
todo.
E quando
carregamos um smartphone hoje em dia, não apenas carregamos um aparelho,
carregamos nossa rede de contatos conosco. Se estiver em casa, no trabalho, na Muralha
da China, em Winterfell, Narnia ou Gondor, tendo sinal, todos estes contatos
estão disponíveis para nós, e nós para eles.
Não estar ao
alcance não quer dizer não estar disponível. Não atende uma ligação ou não
responde uma mensagem em tempo hábil para ver?
Vão fazer
cara feia; vão brigar com você; vão te cobrar porque não atendeu; vão fazer a
pergunta teleológica “porque você tem celular se não atende”, como se o celular
tivesse uma única finalidade, como se para ter um celular tivesse que ter uma
finalidade, e finalidade esta que é atender urgentemente seus contatos!
Criou-se uma
espécie de ethos do usuário de celular, ou seja, um conjunto de costumes
dos portadores destes aparelhos móveis com internet.
Apenas por diversão,
coloquei no google uma busca relacionada com “ética” e “smartphone”, encontrei
uma lista com cinco comportamentos éticos de um usuário:
- Deixar o celular em modo silencioso em certos lugares (velório, sala de aula, reunião);
- Não ignorar outras pessoas por causa do celular (phubbing);
- Não andar enquanto troca mensagens de texto (vai que você cai de cara no chão);
- Não usar o celular no banheiro (germes, sabe?!);
- Não usar o celular como desculpa para evitar certas situações (aquele velho “estava no celular, não vi”).
A noção de
espaço público e privado foi completamente destruída com o uso do celular.
Empregados são contatados por chefes em suas folgas; professores incomodados
por alunos fora da aula; mães superprotetoras contatam suas proles a qualquer
momento; pares ciumentos se vigiam como verdadeiros psicopatas e por aí vai.
Se antes os
endereços eram dados de extrema importância para se trocar entre nossos pares,
agora temos um novo endereço: o número de telefone é um de nossos números de
identificação, ligados com nosso CPF nas operadoras, e por onde podemos ser
contatados a qualquer hora e local.
Poderia
dizer que é exagero, mas vejo que daqui uns anos, as crianças ao nascer terão
além dos números de RG, CPF, terão um telefone cadastrado em seus documentos.
Se já podemos nascer com a distinção de pessoa física, não vejo como tão
absurdo nascer como contatos.
Imagine na sua agenda de telefone o contato: Baby
+55 19 9666-6666, que por acaso é seu filhinho Edward.
Uma gracinha estes novos
tempos que nos aguardam =D
Este post é uma reflexão
sobre uma das cartas que Zygmunt Bauman publicou
na revista italiana La Repubblica delle Donne
entre 2008 e 2009, que depois foram reunidas e editadas para o livro 44 Cartas ao Mundo Líquido Moderno (Zahar).
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