RE: 9 - Estranhas Aventuras na Privacidade III

Lembro-me que quando adolescente tinha um celular que quase nunca tinha crédito, e só servia para jogar joguinho ou para ligar a cobrar. Carregava para cima e para baixo mais por frescura do que por necessidade. Quando queria visitar um amigo, ia até sua casa, não precisava ligar antes de ir, se não estivesse, voltava embora e tentava de novo outro dia. Tinha pouquíssimas amizades de longe, e quando queria falar, tinha que saber o endereço para mandar carta.
Não espere que eu diga que naquela época que era melhor, na boa, era muito chato mandar carta e o sofrimento de esperar a resposta não era dos mais agradáveis.
Com os smartphones, nunca mais precisei enviar uma carta, e ter crédito no celular não virou uma obrigação por causa dos comunicadores que usam apenas o wifi. Carregar o celular já fazia mais sentido, porque a qualquer momento alguém poderia entrar em contato ou mesmo estar disponível para uma conversa.
Dar o número de telefone é dar o consentimento de se estar disponível para o outro o tempo todo.
E quando carregamos um smartphone hoje em dia, não apenas carregamos um aparelho, carregamos nossa rede de contatos conosco. Se estiver em casa, no trabalho, na Muralha da China, em Winterfell, Narnia ou Gondor, tendo sinal, todos estes contatos estão disponíveis para nós, e nós para eles.
Não estar ao alcance não quer dizer não estar disponível. Não atende uma ligação ou não responde uma mensagem em tempo hábil para ver?
Vão fazer cara feia; vão brigar com você; vão te cobrar porque não atendeu; vão fazer a pergunta teleológica “porque você tem celular se não atende”, como se o celular tivesse uma única finalidade, como se para ter um celular tivesse que ter uma finalidade, e finalidade esta que é atender urgentemente seus contatos!
Criou-se uma espécie de ethos do usuário de celular, ou seja, um conjunto de costumes dos portadores destes aparelhos móveis com internet.
Apenas por diversão, coloquei no google uma busca relacionada com “ética” e “smartphone”, encontrei uma lista com cinco comportamentos éticos de um usuário:
  • Deixar o celular em modo silencioso em certos lugares (velório, sala de aula, reunião);
  • Não ignorar outras pessoas por causa do celular (phubbing);
  • Não andar enquanto troca mensagens de texto (vai que você cai de cara no chão);
  • Não usar o celular no banheiro (germes, sabe?!);
  • Não usar o celular como desculpa para evitar certas situações (aquele velho “estava no celular, não vi”).

A noção de espaço público e privado foi completamente destruída com o uso do celular. Empregados são contatados por chefes em suas folgas; professores incomodados por alunos fora da aula; mães superprotetoras contatam suas proles a qualquer momento; pares ciumentos se vigiam como verdadeiros psicopatas e por aí vai.
Se antes os endereços eram dados de extrema importância para se trocar entre nossos pares, agora temos um novo endereço: o número de telefone é um de nossos números de identificação, ligados com nosso CPF nas operadoras, e por onde podemos ser contatados a qualquer hora e local.
Poderia dizer que é exagero, mas vejo que daqui uns anos, as crianças ao nascer terão além dos números de RG, CPF, terão um telefone cadastrado em seus documentos. Se já podemos nascer com a distinção de pessoa física, não vejo como tão absurdo nascer como contatos. 
Imagine na sua agenda de telefone o contato: Baby +55 19 9666-6666, que por acaso é seu filhinho Edward. 
Uma gracinha estes novos tempos que nos aguardam =D


Este post é uma reflexão sobre uma das cartas que Zygmunt Bauman publicou na revista italiana La Repubblica delle Donne entre 2008 e 2009, que depois foram reunidas e editadas para o livro 44 Cartas ao Mundo Líquido Moderno (Zahar).

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