O isentismo



O cenário político costuma nos trazer de tempos em tempos, certas figuras que acabam se proliferando com mais ou menos potência. Uma das figuras que surgiu nestes tempos de maior polarização entre direita e esquerda, foi a figura do isentão.

É inegável que os acontecimentos políticos dos últimos anos, acirrou os ânimos entre as pessoas de posições políticas distintas, e mais ainda, entre aqueles que se dizem de direita, e aqueles que se dizem de esquerda.

Houve momentos que esse maniqueísmo se tornou tão gritante, que os grupos passavam a nem conseguir mais dialogar entre si, e que a derrota de um, era comemorada como vitória do outro. Um exemplo disso, pela direita, foram os fogos de artifícios que soltaram quando a presidenta Dilma sofreu o impeachment; e pela esquerda, a comemoração das denúncias de corrupção contra o Temer.

[Não estou julgando o mérito dos casos em si].

Nestes tempos de paixões políticas, começaram a pipocar aqui e ali, pessoas buscando trazer um certo ar de moderação a estes conflitos, com discursos comedidos, que buscavam fazer uma mediação entre todos os lados e também acusando as paixões existentes.

As pessoas que se sentiram atacadas _ à direita e à esquerda _ entenderam esse discurso como uma espécie de opinião "em cima do muro", ou seja, de alguém que não quer dizer de que lado está. O termo isentão passa a ser usado para pessoas que não se obrigam a se posicionar dentro do espectro político, como se fosse alguém de fora, alguém não "contaminado" pelas paixões políticas, pelas ideologias daqueles que se posicionam no espectro político.

A impossibilidade da isenção

Existem algumas profissões onde a isenção é um valor ético dos mais importantes, como para jornalistas e magistrados. E por que isso?

Quando um jornalista vai cobrir algum acontecimento, ele precisa narrá-lo da forma mais precisa e objetiva possível, se atendo aos fatos concretos, dizendo o que está acontecendo, e porque aquilo está acontecendo. Ele deve evitar o máximo possível aplicar juízos de valor a estes acontecimentos, ou seja, avaliar se estes acontecimentos são bons ou ruins.

O mesmo se dá para uma juíza, quando esta for julgar um caso, ela deve evitar o máximo possível levar em consideração suas posições pessoais a respeito do caso, e apenas aplicar a lei conforme as evidências apresentadas.

É claro que nós seres humanos não somos robôs. Somos constituídos de ideias que dão base a nossa visão de mundo, a nossa subjetividade. E isso quer dizer, que toda vez que olhamos para um acontecimento objetivo, o fazemos a partir das nossas visões de mundo.

Sendo assim, a isenção é algo impossível de ser aplicada, pois todo aquele que se posiciona a respeito de algum assunto, não o faz de uma posição racional completamente desapegada das suas próprias noções de mundo, o faz a partir delas.

Então juízas e jornalistas (e todos os demais seres humanos) não são isentas?

Não, pois sempre que observamos um fato concreto, o fazemos a partir da nossa própria visão de mundo. No máximo, existem pessoas que tem mais capacidade de deixar estas visões de mundo de lado, ou diminui-las sua intensidade, para analisar um fato objetivo.

A isenção como máscara

Uma das críticas feitas aos chamados isentões, é que estes se portam como se fossem sujeitos não ideológicos.

[Sempre desconfie de sujeitos que se dizem não ideológicos, ou que dizem que ideológicos são só os outros].

Ora, se todos somos sujeitos constituídos de ideias, e portanto ideológicos, não faz sentido dizer que "nós não somos ideológicos", e que "os outros é que são ideológicos".

E ainda que usemos o termo ideologia em sua forma negativa _ que é um entendimento de ideologia como uma forma de enganação e mistificação _ são justamente estes sujeitos, ditos isentos, que agem de forma a ocultar parte de suas ideias e posições, agindo como se fossem mais racionais que os demais, e estivessem acima do bem e do mal.

Nesse sentido, uma outra faceta dos isentos, é a forma ideológica da naturalização. Ele firma sua posição como normal, racional, inexorável, "a única que pode existir" e todas as demais posições como estranhas, problemáticas, irracionais e ideológicas.

Esse comportamento ficou bem claro em muitos eleitores do candidato à presidência Amoedo (Novo), que se comportavam como isentos, mas que no fim das contas, estavam simplesmente normalizando uma posição de centro-direita.

[Cujas as máscaras de muitos caíram no segundo turno das eleições presidenciais, pois muitos deles votaram no Bolsonaro, enquanto demonstravam uma forte oposição ao petismo. O que a princípio não tem problema, mas, revela que de isentos, não tinham nada].

Parte dos isentos, acreditam possuir uma espécie de razão técnica, que acreditam ser superior a política, que estaria mergulhada na irracionalidade. Entendem a economia como um fim em si mesmo, e não como uma ferramenta de uso político, para administração dos recursos escassos da sociedade.

É como se para escolher se 5% ou 10% do orçamento público será destinado para educação, fosse uma solução que dependesse apenas de um arranjo técnico-racional, e não fosse uma escolha política.

O comportamento isento

A principal crítica feita ao isento, é a questão de fingir-se de isento, e de achar ser superior por acreditar estar acima das demais posições políticas _ enquanto se está mergulhada nelas.

Agora, o comportamento isento, que seria uma espécie de afastamento de si mesmo, ou seja, de deixar suas ideias e interesses de lado para tentar se aproximar o máximo possível da realidade concreta e objetiva, é sim um ponto interessante.

Outro ponto interessante, é não se posicionar quando não se tem certeza ou segurança de sua própria posição. Se a opinião da pessoa for solicitada, e ela não tiver certeza, o mais correto e honesto a se fazer, é assumir a própria ignorância, e se abster de opinar. Ou arriscar e opinar mesmo assim, mas deixando claro que lhe faltam elementos para uma análise mais aprofundada.

Claro que, num tempo em que não ter posições claras para variados temas é visto com desconfiança, parece quase que obrigatório ter uma opinião sobre tudo. Mas esse é um perigo na qual temos que nos afastar, pois certamente correremos o risco de apenas emitirmos opiniões superficiais, que se apoiam em palavras-chave ou frases de efeito. E nesse sentido, vale o provérbio "falar é prata, calar é ouro", melhor se calar, do que sair falando bobagem e desinformando, que já é algo feito em demasia no mundo das redes (anti)sociais.


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