Maquiavel e Bettina


Como a senhorita Bettina virou assunto estes dias, vamos lá falar sobre. Mas, vou abordar o assunto a partir de uma visão da filosofia, mais especificamente a partir do filósofo florentino Nicolau Maquiável.

Em sua obra O Príncipe, ele fala sobre os conceitos de Fortuna e Virtú.

Fortuna

Fortuna é a sorte, o acaso, os acontecimentos que fogem do controle do ser humano.

O filósofo compara a fortuna a um rio impetuoso que a tudo destrói, e diz em seguida que após a calmaria o homem pode fazer consertos e barragens, de forma que quando houver uma nova cheia, seus efeitos não serão nem tão livres e nem tão nocivos.

"A fortuna se manisfesta onde não há resistência organizada." (Maquiável, O Príncipe, Cap XXV)
 
Aqui ele menciona que a ação do rio é inevitável _ assim como a ação da sorte, do acaso _ e que não podemos controlá-la, porém, diz que podemos agir de forma a minimizar seus efeitos.

Virtú


Virtú assemelha-se ao conceito de aretê dos gregos, que tem a ver com competência, excelência e capacidade de agir assertivamente.

Para Maquiavel, o príncipe virtuoso é aquele que depende de si, de sua capacidade para governar. Não se coloca em riscos desnecessários, e faz o que é necessário para manter o poder de seu Estado, ou para efetuar novas conquistas.

Lembrando da metáfora do rio, podemos dizer que virtú é a capacidade de se organizar e minimizar os efeitos da fortuna.

Sorte x livre arbítrio

capítulo XXV (de quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva resistir) fala sobre o comportamento das pessoas na época (e que ainda ressoa nos dias de hoje), de acreditar que tudo era governado por deus, de forma que os humanos não tivessem controle sobre nada, deixando-se governar pela sorte. Ele porém, discorda dessa atitude:

"Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase." (Maquiável, O Príncipe, Cap. XXV)
 
Aqui fica claro que Maquiavel aceita que a sorte seja sim um fator determinante em nossas vidas, mas ao mesmo tempo, confia que em metade dos casos, ou quase, o livre arbítrio torna possível que tenhamos o controle da situação.

Fatalismo e meritocracia

Se há quem acredite que o acaso, ou um deus ou vários deuses, agem sobre nossas vidas de forma que não há nada que possamos fazer para mudar isso _ o que soa ser um discurso fatalista _ o discurso da meritocracia vem na onda contrária, colocando sobre o indivíduo todo o peso da responsabilidade sobre o que lhe acontece.

Se a pessoa é bem sucedida, é porque agiu corretamente, logo, mereceu o que ganhou. Se a pessoa é mal sucedida, é porque agiu incorretamente, e logo, ela também mereceu fracassar.

Veja que ambos discursos são extremos e irrealistas: um ignora o valor da ação humana, e superestima a ação do acaso, e outro ignora a ação do acaso, e superestima a ação humana.

Utilizando-se do pensamento do Maquiavel, sabemos que existem inúmeros eventos em nossas vidas que simplesmente não temos controle, muitas coisas na vida simplesmente não dependem da nossa vontade, ou do nosso empenho: uma doença; um acidente; uma guerra; uma rua que viramos errado; um segundo que chegamos atrasado, ou adiantado; uma pessoa que confiamos algo; o sistema que deu pau; o tempo que virou de repente; uma tecnologia emergente; uma crise; uma condição financeira ruim, etc.

Lembrando de um trecho da canção de Raul Seixas "Canto para minha morte", citando momentos nos quais a morte pode nos aparecer, dá para perceber exemplos da ação do acaso nesse momento final.

Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida
Existem tantas
Um acidente de carro
O coração que se recusa abater no próximo minuto
A anestesia mal aplicada
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio

Os que acreditam em meritocracia, adoram os cases de sucesso, mas simplesmente ignoram os cases de fracasso, que são a evidente maioria. Quando falhamos, ou acertamos em algo, podemos fazer uma avaliação realista de quais fatores poderiam ser controlados pela ação racional, e quais fatores foram simplesmente atuação do acaso.

Privilégios


Sobre a Bettina, bom, ela está sendo usada como propaganda para vender a ideia de que existe algo como ganhar muito dinheiro rapidamente investindo pouco. Infelizmente tem muita gente que cai nessa ladainha, e isso em parte acontece por essa pressão social em (aparentar) ser bem sucedido _ que nos tempos atuais, de acordo com a ideologia dominante, significa ser rico.

Esse tipo de propaganda reforça exatamente o discurso meritocrático: "É SÓ VOCÊ QUERER!!", "SÓ DEPENDE DE VOCÊ!!!", "SE EU CONSEGUI, VOCÊ TAMBÉM CONSEGUE!!!!".

Quem não nasceu em berço de ouro, sabe que é difícil sair da classe social em que se encontra, das dificuldades que surgem dia após dia. E falando de Brasil (e certamente do mundo), os problemas se agravam dependendo da cor da pele, do gênero, do local onde nasceu, das deficiências físicas ou cognitivas e até da religião.

Nessa grande maratona competitiva que é o sistema capitalista (uma corrida sem sentido em direção ao abismo), nem todo mundo enfrenta os mesmos obstáculos. A Bettina tem um pai que pôde juntar mais de R$ 1.000.000,00 de reais para dar para ela, pagar uma faculdade cara, dar um carro, pagar viagem internacional em todas as férias. Mas, e quantos tem essa condição? Quantos sequer frequentam a universidade ou têm um pai vivo ou presente?

Não se trata aqui, de criar uma disputa de quem tem mais ou menos privilégios, porque isso não leva a lugar nenhum. Mais importante que isso, é que todos e cada um percebam quais as condições materiais, afetivas, intelectuais em que vivem, e entendam como nossa sociedade é desigual.

Só o uso da palavra privilégio, demonstra que na sociedade existe um desequilíbrio, uma desigualdade brutal, pois nem todos têm condições de acessar as mesmas coisas _ como uma universidade pública, que cria vestibulares (caríssimos) para filtrar quem são os alunos que ela quer receber.

A questão do reconhecimento dos privilégios não deve servir apenas para criar culpas ou constrangimentos, deve servir para a reflexão de todos nós. Quem anseia por um mundo mais justo, deveria sentir a obrigação moral, de a partir de seus privilégios, combater a desigualdade, começando por combater os discursos que normalizam, que naturalizam, essa desigualdade.

E isso vale para Bettina também...

Referências

O Príncipe - Maquiavel
https://culturabrasil.org/zip/oprincipe.pdf

Letras - Raul Seixas

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