O APagão e o Pombo


 

Ontem (17/11/2020), a Seleção do Uruguai recebeu a brasileira no Estadio Centenario em Montevideo, sob os olhares atentos de cerca de 60.000 cadeiras vazias, por jogo válido pelas longas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022, no distante Catar.

Aos 45' da etapa inicial, Everton Ribeiro (10), no lado direito da defesa uruguaia, cobra um escanteio curto para o companheiro ao lado, que toca mais atrás para Renan Lodi (6), que mesmo um pouco distante da área, decide mandar a bola no bolo de jogadores que estavam no meio da área; a bola encontra a cabeça de Richarlison (7), o Pombo, que salta, e cabeceia para o chão; a bola vai para o canto esquerdo da meta de Campanã (12). É gol. É o segundo do time comandado por Tite, contra nenhum da Seleção Celeste, sendo este o resultado final da peleja.

Após o fim da partida, em entrevista à imprensa, o Pombo dedicou seu gol ao povo do Amapá, que sofre com problemas de abastecimento de energia elétrica desde a noite do dia 3 deste mês, além de cobrar um posicionamento das autoridades responsáveis.

Acompanhando as redes sociais do atleta, é possível verificar que ele se engaja em questões sociais, seja se posicionando sobre um tema ou outro, ou usando de sua influência para divulgar pessoas que precisam de algum tipo de ajuda. Inclusive, após o jogo em questão, o atleta novamente se pronunciou sobre o tema do apagão em sua conta no twitter: "Infelizmente o povo do Amapá não vai poder ver meu gol hoje pq não tem luz há  DUAS SEMANAS. Estão vivendo dias mt difíceis e espero que resolvam isso logo. Queria dedicar o gol e a vitória de hoje a todos os amapaenses".

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No Brasil se executa um projeto exploração e expoliação da classe trabalhadora, em benefício das classes dominantes, causando desigualdade, pobreza, miséria, fome, violência e caos social constante _ o próprio apagão no estado do Amapá é consequência disso. E contra esse estado de coisas, a maioria do povo, em nome de sua própria sobrevivência, acaba se virando como dá, dentro das fendas de possibilidade que se abrem aqui e ali.

Como negócio lucrativo que é, o futebol (masculino, principalmente) se coloca como uma espécie de loteria, onde milhares de meninos apostam todos os anos, em busca de dignidade para si e sua família, através do dinheiro e da fama. Na perspectiva dos clubes de futebol e todos aqueles que lucram com este no seu entorno, o Brasil, do Oiapoque, passando por Brasília, até o Chuí, é um imenso garimpo, cujas peneiras das categorias de base ajudam a separar as pedras preciosas das não preciosas, e posteriormente com muito treinamento e lapidação, colocam as jóias a venda no mercado.

Num país que nega o básico da dignidade às crianças, onde o analfabetismo funcional é quase a regra, não é de se admirar que jovens que sacrificaram os estudos e suas infâncias em nome do esporte e da garantia de um futuro mais digno, sejam indiferentes às mazelas sociais. Muitos destes jovens podem considerar que tudo o que conquistaram foi apesar da sociedade onde vivem, foi graças somente ao seu esforço e talento ou graças a uma dádiva divina. E quem pode culpá-los de pensar assim?

É comum que aqueles que ascendem economicamente tenham suas mentes ocupadas pela ideologia da classe onde estão.

Feitas estas considerações, me parece estranho cobrar que atletas se posicionem sobre questões sociais. Mais estranho ainda, quando quem o faz, tem condições muito mais favoráveis, sejam materiais, sejam intelectuais, de se posicionar politicamente sobre os diversos temas. É o caso de por exemplo, analistas e jornalistas, que normalmente emitem opiniões assépticas ou reflexas ao senso comum ou de acordo com a vontade do patrão, entretanto, tem por costume criticar quem não se posiciona criticamente.

É um tanto óbvia a afirmação, mas ninguém é obrigado a se posicionar se não quiser. Mas como vivemos em sociedade, e todas as questões sociais atravessam todos os indivíduos que nela vivem, a omissão também gera efeitos, e normalmente, negativos para as classes subalternas. Então ainda que se reconheça as dificuldades (materiais e intelectuais) de cada um, a ação política se torna vital, necessária para a própria luta pela sobrevivência.

Sobre o posicionamento político do Pombo, é admirável que mesmo com as dificuldades sociais apontadas acima, ele decida, a sua maneira, contribuir com o debate. Inclusive, considero isso válido ainda que seja verdade que tais posicionamentos do atleta, sejam produtos de elaboração de uma assessoria, que o direciona, para vender a imagem de bom moço, politizado e preocupado com questões sociais. E digo isso porque o atleta poderia simplesmente se negar a fazê-lo, e agir como a maioria age, se omitindo, ou pior, agir na contramão, atuando como vetor de discursos de ódio, preconceitos e desinformação.

Por mais que tais posicionamentos sejam quase sempre superficiais, ou seja, não tocam nas questões essenciais, estas figuras tem importância dentro desta sociedade tão miserável, do ponto de vista da consciência crítica, e podem ajudar a pelo menos chamar a atenção para algumas questões candentes no cotidiano. Ao não se omitirem, não se entregam a apatia e assim fazem como podem, política.

Referências

UOL - AP: 13 cidades têm novo apagão; macapaenses relatam eletricidade instável https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/11/17/randolfe-afirma-que-amapa-sofre-com-novo-apagao-total-e-cobra-autoridades.htm?cmpid=copiaecola

Goal - Richarlison dedica gol ao povo do Amapá e lamenta apagão de luz na cidade

https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/richarlison-dedica-gol-ao-povo-do-amapa-e-lamenta-apagao-de/1r9p0hjxgc6811i9oymkcvawaw



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