Um papo sobre estrutura social e futebol

Torcida no Maracanã em construção, anos 1950

Os seres humanos são seres sociais, que se organizam de diversas formas, desde seu núcleo familiar, até em associações funcionais, como por exemplo, em partidos políticos, repúblicas, seitas religiosas, grêmios estudantis, associações de bairro, sindicatos de trabalhadores, sindicatos patronais, ordem de advogados, clubes de futebol, confederações esportivas e etc. Cada uma destas formas de organização, possui normas internas que são decididas de acordo com os valores daquele grupo social, através de uma disputa política, mais ou menos equilibrada _ do ponto de vista do poder de cada membro ou de grupos dentro destas organizações. 

Consequentemente, tais normas são impostas aos membros destas organizações, tanto aqueles que já fazem parte, quanto aqueles que serão incorporados no futuro. Podemos dizer que esta lógica na forma de relação entre as pessoas, que se impõe a elas, acaba constituindo uma ordenação ou estrutura social.

O conflito de interesses contrários, mudanças promovidas pelo acaso e outros fatores, possibilitam sempre mudanças nas relações no interior destas estruturas, de forma que elas não são imutáveis.

Existiu um importante pensador na história mundial, que certa vez escreveu: "Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.". Essa frase foi proferida por Karl Marx na obra "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte", e coloca sobre a mesa uma das grandes contradições da vida humana: de um lado a possibilidade de transformação da realidade, e de outro as imposições que a realidade coloca para tais transformações.

A mesma música

No futebol, existem alguns tópicos irritantes que são discutidos de forma perpétua, é como uma faixa de um disco que está sempre riscada, mas que sempre volta com seu ruído insuportável a ser tocada. Nesta última semana tivemos duas destas faixas: a convocação de jogadores de clubes brasileiros pelo técnico do time da CBF, vulgo Seleção Brasileira, e troca de técnicos entre equipes.

Existem dois tipos de organizações principais dentro do futebol: a primeira é esportiva, que são os clubes de futebol, e a segunda organiza os eventos esportivos no estado ou país, as federações (confederação). 

Por alguma razão que precisa ser estudada, no Brasil os clubes mesmo sendo aqueles que detém o direito sobre os atletas, que possuem torcida, serem aqueles que colocam suas cores em campo para jogo, são os que possuem menos poder que as associações que organizam os campeonatos. Esse poder a menos, os coloca sob eterna submissão das federações estaduais e da CBF: os faz assinar campeonatos com fórmulas esdrúxulas; faz jogar campeonatos irrelevantes do ponto de vista técnico; aceitar calendários terríveis _ muitas vezes com jogos em horários desumanos para os atletas ou impraticáveis para os torcedores _ e datas que entram em conflito com as tais "datas Fifa".

Como dito acima, a estrutura por mais que se imponha, pode ser mudada, mas para que isso aconteça, estes atores sociais precisam lutar de forma conjunta contra ela. E entra aí outra questão: cada clube tem seus próprios interesses, que parecem não ser conciliáveis em momento algum, o que praticamente não permite uma união entre eles e uma rebelião contra a estrutura imposta.

Dentro dessa briga, temos os indivíduos, com menor poder e por isso com menor capacidade de agir sozinhos dentro dessa estrutura. É justamente aí que as faixas do disco tocam, repetidamente, e que em meio ao ruído parece que ninguém as ouve. 

Um treinador de Seleção, seja ela qual for, é um indivíduo, e como alguém contratado para uma função, que é fazer aquela Seleção prosperar, não pode ser responsabilizado sozinho por "tirar o jogador" do time que for, uma vez que há uma estrutura com poder muito maior que o dele, que impõe sua própria lógica de funcionamento.

Não estou, porém, inocentando-o por completo da situação. Veja que eu disse "não pode ser responsabilizado 'sozinho'", e isso quer dizer que todos os atores de uma estrutura também respondem por ela. Nesse sentido, poderia dizer que o treinador poderia sim agir politicamente, seja se recusando a convocar mais de um jogador de um mesmo clube, por exemplo, ou discursando sobre o tema.

O mesmo vale para a faixa dois, que são dos técnicos que trocam de clube. Os clubes não dão nenhum tipo de segurança para os treinadores, nem as regras da conferação os protegem e nem um sindicato lhes são efetivo o suficiente. Mas quando estes trocam de clube por uma proposta melhor de outro, são questionados, chegando ao ponto absurdo de serem chamados de traidores. Novamente, eles não são apenas vítimas inocentes, poderiam sim se unir, se posicionar, protestar, fazer greves exigindo melhores condições de trabalho, mas não o fazem. E o que resta a eles aparentemente, é agirem apenas pensando no seu interesse pessoal.

Claro, é complicado espelhar nossas expectativas nos outros, e buscar nestes um heroísmo que nos falta em nosso cotidiano. Impor um comportamento ético aos outros, que nos falta, é como ser um moralista sem moral.

A lógica por trás de muitas destas estruturas _ e particularmente neste tema, do futebol profissional, que é um negócio milionário _ é a lógica do lucro em oposição a distribuição, da competição em oposição a cooperação, e isso destrói os laços de solidariedade e empatia, empurrando os indivíduos cada vez mais para um individualismo exacerbado. Desta forma, é difícil esperar que certos atores sociais de forma isolada se oponham as estruturas onde estão implicados, porque no fim, talvez, imaginem que não terão apoio suficiente, e acabarão no ostracismo e sem dinheiro.

Um adendo

Eu discordo de alguns jornalistas que tratam os torcedores como seres irracionais apenas movidos por paixão, e que consideram normal estes ficarem revoltados com as tais trocas de treinadores ou outras questões que se colocam. Parece aqui que os senhores jornalistas são os seres racionais, e que a massa é só uma ajuntamento amorfo e ignorante. 

A afirmação é tão absurda, que estes se surpreendem quando jornalistas profissionais, agem que nem os torcedores. Quando a raíz do problema, em ambos os casos, é a falta de reflexão e consciência crítica sobre quaisquer temas tratados. Entendo que o jornalista é pago para agir de uma certa forma, mas isso não importa se a este, mesmo no exercício da função, lhe falte consciência crítica.

Referências

G1 - Flamengo oficializa contratação do técnico Rogério Ceni, ex-Fortaleza

https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/flamengo-oficializa-contratacao-de-rogerio-ceni.ghtml

UOL - Torcedores do Fla na web se irritam com Tite após convocação de Pedro

https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2020/11/06/flamengo-pedro-convocacao-tite.htm

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