Dinizismo: método ou desrespeito?

Tchê Tchê e F. Diniz

Em jogo pela 28° rodada do Campeonato Brasileiro de futebol masculino (ou Covidão 2020-21), na terra da linguiça, o Bragantino derrotou o então líder São Paulo, fazendo só no primeiro tempo 4 gols _ o jogo terminou 4 a 2.

Ainda no primeiro tempo, quando o jogo estava 3 a 1 para o time de Bragança, o treinador do tricolor, Fernando Diniz, ficou furioso e começou a ofender o meia Danilo, o Tchê Tchê, chamando-o entre outras coisas de "ingrato", "perninha" e "mascaradinho". O atleta, visivelmente nervoso, ainda tentou rebater o treinador, sem muito sucesso. 

Coincidência ou não, no começo da etapa final, o jogador deu uma cotovelada num atleta do time rival, num lance completamente sem explicação, e com auxílio do VAR foi expulso. 

Falando sobre expulsões, o time do São Paulo tem sido bem disciplinado nesta temporada 2020-21, com apenas duas expulsões de atletas, essa de Tchê Tchê e mais uma de Trellez, por reclamação no Copa do Brasil. Foram mais três expulsões, uma do preparador físico da equipe, e DUAS do treinador, Fernando Diniz, estas por reclamação e na Copa do Brasil.

Dentro desse contexto, fica difícil sustentar a tese de que foi uma simples coincidência a expulsão do atleta.

Método ou desrespeito?

Depois do jogo em Bragança, o treinador minimizou o caso, e disse que tem sua forma particular de cobrar, e ele (Tchê Tchê) entende isso.

Não é a primeira vez que o treinador perde as estribeiras e ofende além dos atletas de seu próprio time, outros treinadores e as arbitragens.

Talvez por causa dessa história do treinador "ser psicólogo" _ tema que retomarei mais adiante _ haja uma confusão de até onde o que ele faz é método, e até onde é simplesmente abuso e falta de respeito.

Os machões da internet, das várzeas, e outros que curtem dizer que são raíz, consideram normal esse tipo de tratamento, e falam que isso faz parte do jogo, que futebol é coisa de homem, e que por isso a ofensa pode servir para motivar o peão. Esse tipo de opinião costuma vir acompanhada das expressões tradicionalistas, conservadoras ou simplesmente nostálgicas: "na minha época", "no meu tempo", "ah, mas hoje em dia...", "essa geração de hoje", etc.

Se considerarmos que essa atitude de ofender para motivar, é um método, acho interessante pensar porque raios alguém, ao ser sistematicamente ofendido, humilhado, ridicularizado por alguém que está do seu próprio lado da trincheira, se sentiria motivado a realizar algo.

Há quem argumente que porque eles tem uma relação mais próxima, isso permite que eles se tratem mal mutuamente, e que não há problema nisso, porque eles conseguem se entender. Estaria mentindo se não dissesse que não conheci na minha trajetória pessoas que vivem se tratando mal, e estranhamente, aparentam estar bem com isso. A questão que deixo aqui é: até que ponto esse tipo de relação é saudável?

"Manda quem pode, obedece quem tem juízo"

Outro ponto que não pode ser perdido de vista, é que estamos falando da prática do futebol como profissão. As empresas _ ou mesmo associações _ não são ambientes democráticos, são ambientes hierarquicamente estruturados onde, como diz o ditado "manda quem pode, obedece quem tem juízo". E nesses ambientes, não estamos falando de relações entre iguais.

Num time de futebol, o treinador está hierarquicamente acima dos atletas. Ele dá ordens, dá comandos, gerencia os atletas. Ele tem o poder de escalar quem quiser, e não escalar que ele não quiser. É muito bonito ver relações desinibidas entre chefes e seus subordinados, mas mesmo assim, no dia a dia, se esse chefe não quiser perder a capacidade de comandar, ele tem que exercer seu poder de superior nessa relação. 

E daí vem a pergunta: o que aconteceria se o jogador tratasse seu treinador, que está hierarquicamente acima na estrutura, da mesma forma que o treinador o tratou?

O atleta (e seus companheiros que ficaram calados durante o acontecimento) provavelmente sabia o que aconteceria, tanto que mesmo visivelmente irritado, não se expressou à altura. (Entenda "se expressar a altura" a seu modo, do meu lado, eu não ficaria surpreso se o atleta revidasse com um sopapo na cara do treinador).

E ainda nesse tema, temos o que vou chamar de hierarquia informal, ou seja, uma hierarquização nas relações que vai além daquela prevista nos regramentos internos de uma instituição. Se me permitem dizer, essa forma informal, possibilita que certos indivíduos possam ter mais influência na estrutura, mesmo estando num nível formalmente mais baixo. 

Aqui, é interessante notar, o treinador humilha um jogador que não tem uma história consolidada no futebol, que não tem uma influência tão grande dentro do clube ou ainda, um apelo tão grande junto a massa da torcida. Mas o mesmo treinador, teve uma postura cortez com Daniel Alves, que tem uma carreira super vitoriosa, além de muita influência dentro do clube, e muito apelo junto à torcida, mesmo este sendo quem perdeu uma bola fácil, e que originou o primeiro gol do adversário.

Então podemos dizer que muitos dos argumentos que visam normalizar a situação, esquecem de levar em consideração que não se trata de uma relação entre iguais. É uma relação profissional. É trabalho. A própria associação deveria se posicionar e tomar uma atitude disciplinar contra o treinador, porque não é razoável num ambiente profissional (e fora dele), que um de seus empregados aja de forma abusiva contra outros, ainda mais em público.

Exposição pública

Desnecessário dizer, mas o futebol é o esporte mais popular do país, com alguns clubes com torcidas na casa dos milhões. E uma parte desses torcedores assistem aos jogos de seus times, em suas casas ou de amigos, nos bares, restaurantes ou mesmo no estádio. Além disso, existe uma retroalimentação pela mídia, que repercute em seus programas não apenas os jogos, mas eventos ligados ao jogo. Ou seja, você assiste ao jogo, e depois pode assistir o que se fala dele.

Essa repercussão permite que o que aconteceu dentro do jogo, Bragantino e São Paulo, seja ruminada dias a fio. Quando escrevo esse texto, estou ajudando (ainda que muito pouco), nessa repercussão inclusive.

Quando falo de repercussão, estou falando no fundo do ato da transmissão de um evento do ambiente privado (campo de futebol) para um ambiente público.

O treinador ficar desequilibrado e acabar dizendo o que não deve, infelizmente acontece. Mas na coletiva pós jogo, ele não só não se desculpou pelo que disse, mas minimizou e ainda pediu compreensão. É não levar em consideração que o atleta foi exposto publicamente, diante de milhões de pessoas. E entre estas, não podemos nos esquecer de seus familiares e amigos que provavelmente não gostaram do que viram, e podem, de uma forma ou de outra, sofrer os efeitos destas humilhações.

Entendo que é um ambiente de alta competição, que envolve muito dinheiro, num país e esporte culturalmente machista, e nem por isso advogo que seja necessário um tratamento carinhoso entre treinador e atletas. Mas acho que no mínimo, a máxima do "trate os outros como você gostaria de ser tratado" deveria prevalecer, e o fato de o abuso ser considerado normal por muitos, não poderia invalidar isso.

O treinador-psicólogo

Há um tema transversal, que diz respeito ao fato do treinador Fernando Diniz ser formado em psicologia, e segundo ele mesmo, aplicar conceitos desta área na equipe.

Considero bem vindo a aplicação de conceitos de outras áreas do conhecimento científico no futebol, desde que, faça sentido e traga algum tipo de benefício. Sendo assim, considero positiva essa atitude do treinador.

Todavia, quando o treinador perde o controle e dá os seus pitis, não é incomum uma espécie de cobrança a ele, que por ser psicólogo / formado em psicologia, não poderia agir dessa maneira. Só que não podemos nos esquecer, que ele não está numa clínica com pacientes. Ele é um treinador de futebol, que usa conceitos da área, isso não faz dele um psicólogo à beira do gramado.

Geralmente em cada profissão, é esperado um tipo do comportamento dos profissionais. E gostemos ou não, as pessoas constróem uma imagem dos profissionais da psicologia, como pessoas que tem autocontrole, sensatez, polidez, etc. Ninguém gostaria de ver seu terapeuta, a pessoa a quem você confia segredos, angústias, traumas, tendo atitudes que você reprova. Sim, é um peso e até uma injustiça. 

Porém, devemos nos libertar dessas imagens, e lembrar que antes de serem profissionais, as pessoas são quem elas são, com suas trajetórias, personalidades, desejos e angústias.

Sobre o método do Fernando Diniz, fico me perguntando qual abordagem da psicologia que ele aplica, e quais os estudos e evidências científicas, que corroboram que ofender as pessoas em público trazem benefícios de qualquer natureza a curto, médio e longo prazo.

Referências

ESPN - Tchê Tchê não foi o único: ataques de fúria de Diniz à beira do campo já tumultuaram até jogo-treino

G1 - Video - Diniz bate boca e chama Tchê Tchê de "mascaradinho"

G1 - Video - Expulso! Árbitro revisa no VAR e dá o vermelho a Tchê Tchê por cotovelada em Cuello, aos 14 do 2º

G1 - Fernando Diniz chama Tchê Tchê de "ingrato" e "mascaradinho" durante jogo do São Paulo contra o Bragantino; assista

G1 - Em São Paulo disciplinado, Fernando Diniz lidera lista de expulsões na temporada

Gazeta Esportiva - São Paulo ainda não teve expulsões em 2020 e busca igualar marca que dura 74 anos

Jovem Pan - Fernando Diniz exagerou na bronca com Tchê Tchê? Veja o comentário de Vampeta

R7 - Arrogância, palavrões, desrespeito. Do psicólogo Diniz a Luciano

UOL - Tchê Tchê se assusta com xingamentos de Diniz e prefere silêncio e "paz" 

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