Tenho me sentido muito estranho nos últimos anos, uma
ansiedade me assalta num minuto e noutro se esvai, dando lugar a um vazio. Em um
dado momento isso começou a me corroer por dentro e tive que recorrer a
indústria farmacêutica para me ajudar a aliviar este tormento. Quer dizer, não
o tormento, apenas a corrosão, pois o tomento ainda prossegue.
Você fala em mundo líquido, que é um mundo onde nada
conserva sua forma por muito tempo, e isso me remete a uma frase de Marx que
diz que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, me pergunto se estão a falar da
mesma coisa. Vou além, pois também é inevitável não lembrar do bigodudo
Nietzsche e sua fala sobre a “transmutação de todos os valores”.
Ao pensar na constância e velocidade destas mudanças, um
monte de lembranças me vem à cabeça.
Em 2005, eu me lembro que passei da fase de experiência do
Mc Donalds, onde eu ganhava um salário de R$2,13 por hora (é, só isso mesmo) e
comprei um computador parcelado em 10 vezes. Era um Windows XP, com 80
gigabytes de HD, processador Celeron (não me lembro o modelo), acho que 512
megabytes de memória RAM (ou 1 gigabyte, não tenho certeza) e um gravador de CD
que também rodava DVD (mas não gravava DVD). Não era um top de linha, mas ainda
assim paguei caro e foi um computador bom o suficiente para resistir por 5 anos
de uso constante.
Um computador desses hoje em dia não é páreo para um
smartphone qualquer, e do ponto de vista da evolução dos processadores,
memórias e demais componentes, é algo que ficou muito para trás.
Estes dias estava conversando com um amigo no bar, e ele
disse que um amigo dele que é alemão e que mora na Alemanha, postou no facebook
“Torrrrrr”
(Tor é gol em alemão). Esse meu amigo questionou: “gol de quem?”, e o alemão
respondeu “Gol do Corinthians”. Meu amigo respondeu que nem sabia que o Corinthians
estava jogando.
Parece uma narrativa comum , mas quando penso “caramba, o
cara lá na Alemanha está sabendo de algo que está acontecendo aqui, que quem
está aqui não sabe”, e se lembrarmos que estamos falando do time de segunda
maior torcida do país e do esporte mais famoso do país, é ainda mais espantoso.
Há alguns anos atrás, quanto tempo demoraria para o alemão
ter uma notícia dessas?
Acabei de pensar que é engraçado que quando eu penso em
mudanças no mundo, o que me veio à mente foi logo uma mudança tecnológica e não
outra qualquer.
Para falar das mudanças nas sociedades em geral, nos últimos
tempos tivemos revoluções populares em locais onde não era possível imaginar
que pudessem acontecer como no Brasil, Turquia, Inglaterra ou no Egito.
Muitas causas das minorias, ainda que sofrendo muita
opressão, são levantadas todos os dias e colocadas para debate. Mulheres,
negros, ateus, LGBTs e outros, têm se organizado cada vez mais e buscado seu
espaço e respeito na sociedade.
A espiral do silêncio por vezes começa a se verter contra os
preconceituosos, que em desespero atacam dizendo que o mundo ficou chato,
porque eles não pode ser preconceituoso em paz, como eram antes.
Muitas atitudes vistas como abomináveis, hoje em dia são um
pouco mais toleradas. Por exemplo, era inimaginável ver casais homossexuais de
mãos dadas ou se beijando na rua, hoje isso já é visto e defendido por um grupo
de pessoas; mães solteiras não são mais vistas como abominações; o número de
divórcios cresce cada vez mais; muitas pessoas, mesmo as mais velhas, estão se
tatuando, colocando piercings e pintando os cabelos; a maconha vem sendo
liberada em muitos lugares assim como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e
etc.
No meu caso, quando eu digo que sou ateu ainda ouço aquelas
bobagens “você não acredita em nada?”, “mas você é uma pessoa boa, como pode
não acreditar em deus?”, “não tem ateu quando o avião começa a cair...”, mas
sinto que a reação das pessoas tem sido melhor do que era antes, o tema não é
mais tão tabu quanto já fora um dia.
Com tantas mudanças deste mundo líquido, realmente parece
que temos que nos questionar todos os dias, pois somos bombardeados por todos
os lados por novos desafios. É difícil, porque o ser humano não gosta de
mudanças, o viés cognitivo de confirmação não tolera aquilo que nos desagrada.
Nós irracionalmente buscamos confirmação para os nossos gostos, mas não tem
jeito! A força da mudança atinge mesmo quem se esforça para ficar rígido, é
como uma onda no mar (acho que você não conhece o Lulu Santos, se conhecesse
iria entender a referência).
Até uns 21 anos eu era muito escroto, sério. Tinha um monte
de preconceitos e os expunha como se fossem normais, como se não houvesse nada
de errado com o que eu pensava. Era muito conservador e pouco ligava para o que
acontecia na vida da sociedade, como um todo. Era eu na bolha do espaço
privado, na ilusão das certezas fáceis, das convicções, que como diria
Nietzsche, são inimigas mais perigosas das verdades do que as mentiras.
Não me lembro como, nem o porquê, mas a onda da mudança me
atingiu na cintura, me derrubou e me fez bater a cabeça. A amnésia deu espaço
para novas perguntas, e estas perguntas geraram novas respostas que geraram
mais perguntas.
Eu me lembrei de Descartes quando diz que temos que olhar de
fora, recortar pedaços da realidade e coloca-los em perspectiva, a fim de
podermos estranhar aquilo que nos parece normal, aquilo que sempre esteve aí,
aquilo que não muda, “aquilo que se esconde sob a luz enganosa e ilusória da
familiaridade”, enfim, duvidar de tudo que sabemos para buscarmos novo
conhecimento.
[Dominação perfeita é quando o dominado, além de não saber
que está dominado, luta em favor daquilo que o domina.]
Com tanta informação é de fato difícil saber em que acreditar,
qual lado seguir, como diminuir esta sensação de tormento, que eu creio, não
sou o único a senti-la.
O jeito parece aperfeiçoar a capacidade de pensamento, de
raciocínio, de análise crítica e não tomar quase tudo como verdadeiro não importa de onde venha a informação. Tudo bem, eu sei, isso parece óbvio... mas é isso mesmo, só
parece.
Não falo de ceticismo absoluto, até porque nem todo mundo tem o tempo que
Descartes teve para pensar e dormir, mas falo de aperfeiçoar nossos filtros
racionais, sempre que possível, no pouco tempo que resta da rotina trabalho /
escola / tarefas do lar / netflix / jogos / redes sociais.
Espero que me ajude, ou melhor, nos ajude (tem alguém lendo
isso aqui, né?), a pensar em novas maneiras de fazê-lo.
Saudações, de seu leitor.
Este post é uma resposta para uma das cartas que Zygmunt Bauman publicou na revista italiana La Repubblica delleDonne entre 2008 e 2009, que depois foram reunidas e editadas para o livro 44 Cartas ao Mundo Líquido Moderno. (Zahar)
5 Comentários
Bauman mito
ResponderExcluirVai lançar um livro quando?
ResponderExcluirsauhsauhsah quando eu conseguir me disciplinar e terminar as coisas que começo.
ExcluirBauman mito
ResponderExcluirBaumito (putz uhasashsauhsauh)
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